Conhecer a Dislexia – da identificação à intervenção terapêutica e pedagógica

Saber ler para saber aprender

                Ser bom leitor (e bom escritor) requer competências cognitivas e comunicativas altamente diferenciadas. Estudos científicos baseados em neuroimagem e em conhecimentos psicolinguísticos têm revelado e explicado os processos mentais envolvidos e utilizados no ato de leitura e de escrita. Sabe-se que a aprendizagem formal da linguagem escrita apoia-se em conhecimentos prévios da linguagem oral e que entre oralidade e escrita existe uma influência recíproca. No entanto, ao contrário da linguagem oral, a linguagem escrita necessita de ser ensinada explicitamente. Este facto relaciona-se, mas não só, com a condição de que a escrita não representa diretamente os sons da língua, ou seja, um som da fala pode ser representado por várias letras e uma letra pode corresponder a vários sons da fala. Além disso, recorrendo a linguagem escrita a símbolos gráficos que se processam num espaço, respeitam determinada orientação e assentam em regras próprias de construção e articulação entre si, é fácil antecipar que esta forma de comunicação estática e permanente é altamente exigente. Esta aprendizagem exige, então, um funcionamento cerebral pleno, um processo ensino-aprendizagem adequado, um meio sociocultural envolvente e, ainda, consideração pelas experiências prévias vividas e adquiridas pela criança até à idade escolar.

Deste modo, para que ocorra uma efetiva e harmoniosa aprendizagem da linguagem escrita devem considerar-se algumas competências gerais, nomeadamente um adequado desenvolvimento linguístico oral por parte da criança, conhecimentos prévios sobre leitura e escrita, assim como interesse e motivação para ler e escrever. No entanto, existem fatores fulcrais como a inteligência, a atenção e concentração, a memória, a perceção visual e auditiva, questões de orientação espacial e temporal, e até mesmo a lateralidade, sendo que estes fatores podem ou não beneficiar o processo de alfabetização, consoante o seu nível de desenvolvimento e/ou funcionamento.

A aprendizagem da linguagem escrita exige ainda a “metalinguagem”, competência que funciona como pré-requisito para aceder à leitura e à escrita, permitindo à criança manipular de forma consciente a sua língua fora do contexto comunicativo. Uma boa metalinguagem envolve, por exemplo, um conhecimento consciente do significado das palavras e frases, reflexão sobre agramaticalidade, assim como uma análise consciente dos sons da língua e compreensão da sua sequência sonora. A metalinguagem permite, pois, enriquecer, facilitar e tornar mais eficaz o ato de ler e/ou de escrever. No entanto, existem crianças que, com ou sem dislexia, poderão ter alterações a este nível.

Dislexia: definir para melhor intervir

A palavra “dislexia” deriva do grego e significa etimologicamente dificuldade na palavra escrita. A Associação Internacional de Dislexia estabeleceu, em 2003, aquela que ainda hoje parece ser a definição mais aceite e completa para o diagnóstico de dislexia. Assim sendo, a dislexia é uma perturbação específica da aprendizagem da linguagem escrita de origem neurobiológica e psicolinguística, caracterizando-se por dificuldades variáveis na correção e/ou fluência na leitura de palavras que assentam num défice na consciência fonológica (componente da metalinguagem, já referida anteriormente). Estas dificuldades são inesperadas em relação a outras capacidades cognitivas e às condições educativas. Uma criança disléxica tem, então, dificuldades na descodificação e compreensão da leitura e, regra geral, apresenta também alterações na escrita (disortografia). Neste sentido, é comum um diagnóstico de dislexia ter coassociado um diagnóstico de disortografia, embora o contrário possa não acontecer. A criança disléxica é considerada, no contexto escolar (e quando devidamente diagnosticada), uma criança com necessidades educativas especiais, com alterações estruturais e funcionais de base neurobiológica e de caráter permanente que têm impacto significativo na atividade e participação em todos os contextos onde a criança se insere.

A dislexia tem a sua etiologia, como já foi referido, assente em questões neurobiológicas e psicolinguísticas, mas também genéticas. Vários são os estudos que referem a existência da transmissão hereditária da problemática. 68% das crianças com dislexia têm pelo menos um progenitor com a mesma condição e existe 40% de probabilidade de um irmão de uma criança disléxica ter dislexia. Mais recentemente, estudos laboratoriais sobre o genoma humano concluíram que existem alterações/especificidades comuns em indivíduos disléxicos para os cromossomas 2, 6 e 15. Estudos a nível neurobiológico, por ressonância magnética funcional, concluem que um disléxico ativa mais intensamente a região inferior frontal e parietal-temporal comparativamente a um normoléxico, realizando assim um percurso mais lento e analítico para descodificar e compreender a linguagem escrita.

Relativamente a questões de incidência, a dislexia parece estar mais presente no sexo masculino (3-6:1), embora esta proporção seja atualmente muito contestada e haja quem defenda uma homogeneidade na distribuição dos casos, considerando a variável sexo. Em Portugal, é conhecida a prevalência da dislexia no 1º ciclo situando-se, segundo um estudo publicado recentemente, entre os 5,4% e os 8,6% para um intervalo estimado entre os 3% e os 15% a nível mundial.

Perfil geral de uma criança disléxica

Existem características “protótipo”, cientificamente estudadas e validadas, que permitem, atualmente, traçar o perfil típico de uma criança com dislexia. Assim, estas crianças apresentam um desenvolvimento cognitivo normal ou superior, ausência de problemas sensoriais (auditivos e visuais), compreensão auditiva verbal oral superior à da linguagem escrita, consciência fonológica diminuída, leitura lenta, silábica/analítica e decifratória. A criança disléxica apresenta ainda dificuldade na leitura/reconhecimento de palavras novas e de pseudopalavras, níveis de atenção e concentração instáveis, dificuldades na orientação espacial, lateralidade e memória (sequencial/visual/auditiva/temporal). Quase sempre, as dificuldades verificadas ao nível da leitura (descodificação e compreensão leitora) também existem na escrita ao nível da codificação fonema-grafema e/ou na assimilação de regras ortográficas e linguísticas pelas quais se baseiam o planeamento e produção de palavras, frases ou textos. A criança com dislexia pode ainda apresentar alterações na fala de caráter fonético, baixa autoestima e frustração perante atividades que envolvam leitura e escrita, ou ainda disgrafia (alterações no traçado grafomotor – caligrafia ilegível) e/ou discalculia (dificuldades ao nível do processamento numérico com alteração na compreensão de problemas matemáticos).

 

Sinais de alerta – indicadores no 1º ciclo

Os professores titulares de turma e os pais poderão estar atentos a alguns sinais ou indicadores de alerta que possam sugerir a possibilidade de uma criança poder vir a ser diagnosticada com dislexia (e disortografia). A criança revela falta de interesse por livros ou outros materiais escritos? Tem dificuldades em noções espaciais/temporais? Tem dificuldades nas rimas ou noutras tarefas fonológicas como segmentar, identificar ou manipular silabicamente palavras? Tem dificuldades em associar as letras aos sons (princípio alfabético)? Tem dificuldades em soletrar? Tem dificuldades em copiar do quadro e/ou nos ditados? Escreve algumas letras em “espelho”? Solicita com frequência a repetição de conteúdos e/ou a leitura de enunciados para compreender o que lhe é pedido? Tem dificuldades na matemática? Demora muito tempo a realizar as tarefas comparativamente aos outros meninos? A resposta positiva à maioria destas questões indica a necessidade de sinalização e referenciação da criança para uma análise detalhada do caso a nível clínico, familiar e pedagógico.

Referenciação e intervenção por equipa multidisciplinar

                Normalmente, é o professor titular de turma que, em articulação com o encarregado de educação, sinaliza a criança, fundamentando adequadamente os motivos da sinalização. Idealmente, este processo de sinalização/referenciação é posteriormente analisado por um professor do Departamento de Educação Especial da escola/colégio/agrupamento escolar que aciona, quando existentes, os serviços técnico-pedagógicos da instituição de ensino para uma avaliação clínica e pedagógica interdisciplinar/integrada, tomando-se em equipa a decisão de integração ou não do processo educativo do aluno ao abrigo do Decreto-lei nº 3/2008. Esta legislação (entre outras complementares e/ou regulamentares) permitirá adequar o processo ensino-aprendizagem e a forma de avaliação destes alunos. O diagnóstico de dislexia pode ser estabelecido a partir do final do 2º ano (no final do processo de aprendizagem formal da linguagem escrita) e até ao final do 2º ciclo do ensino básico, considerando a legislação anteriormente referida. No entanto, é importante referir que já em idade pré-escolar poderão existir indícios/sinais que exijam, desde logo, vigília e trabalho ao nível de dificuldades/pré-requisitos fundamentais para a aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita.

A intervenção do professor titular, dos pais, do psicólogo, do terapeuta da fala, do professor de educação especial ou do professor de apoio educativo é fundamental nestes casos, só havendo diagnóstico e um trabalho verdadeiramente dirigido e minucioso com a participação de todos estes elementos em parceria e coarticulação. Relativamente à intervenção específica do terapeuta da fala, esta deve ser baseada em metodologias multissensoriais que privilegiem uma diversificação de materiais, atividades e estratégias que permitam melhorar a consciência fonológica e aspetos associados e implicados na leitura e na escrita como, por exemplo, a discriminação auditiva de sons acusticamente próximos, correspondência som-letra/letra-som, a fluência, correção e velocidade leitora, a coesão, correção e coerência na escrita de palavras, frases e textos, assim como a compreensão literal e inferencial do material lido.

Aconselhamento aos pais

Um diagnóstico representa muito pouco. Mais do que prisioneiros ou reféns de dificuldades ou limitações, todos somos beneficiários de imensas potencialidades ou talentos. A criança disléxica não é exceção. Os pais são, então, a âncora e o prolongamento da intervenção clínica e pedagógica desenvolvida com e para estas crianças. Um prognóstico favorável depende também da disponibilidade, interesse e entrega dos pais no processo terapêutico e/ou educativo dos seus educandos. Relativamente à dislexia, os pais podem auxiliar o seu filho lendo, partilhando e mostrando o valor da escrita, incentivando o manuseio e exploração de livros e de outros materiais escritos, a leitura em voz alta com dinâmicas diferentes e gravação audiovisual da mesma, o debate sobre enredos, personagens e sentimentos associados a determinadas histórias. O fundamental é que os pais reforcem e defendam sempre as conquistas e progressos verificados, elogiando o esforço, a colaboração e a dedicação dos seus filhos. É meio caminho andado para que a criança, sentindo-se valorizada, continue a ultrapassar as suas dificuldades e, primordialmente, seja feliz.

 

Referências bibliográficas

ABD – Associação Brasileira de Dislexia (www.dislexia.org.br)

American Psychiatric Association (2002). Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM IV. Artmed.

Capovilla, F. (2002). Neuropsicologia e aprendizagem: uma abordagem multidisciplinar. 2ª Ed. São Paulo: Memnon.

Dias, M. (2013) O papel da consciência fonológica nas dificuldades específicas de leitura e escrita: perspetiva dos docentes do 1º CEB. Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação na Especialidade em Domínio Cognitivo-Motor, Escola Superior de Educação João de Deus (Lisboa).

DISLEX – Associação Portuguesa de Dislexia (www.dislex.co.pt)

Martins, M. & Capellini, S. (2011). A intervenção precoce em escolares de risco para a dislexia : revisão da literatura. Revista CEFAC, 13(4).

Massi, G. & Santana, A. (2011). A desconstrução do conceito de dislexia: conflito entre verdades. Revista CEFAC, 21(50).

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Vale, A., Sucena, A. & Viana, F. (2011) Prevalência da dislexia entre crianças do 1º ciclo do ensino básico falantes do português europeu. Revista Lusófona de Educação: 18(1), 45-56.

 

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